A incrível história de Wallace Alves Martins, 27 anos, morador do Complexo do Alemão, um complexo de favelas violento do Rio de Janeiro, que ganhou um prêmio internacional ao criar um sistema matemático que pode, no futuro, baratear a circulação de dados entre dispositivos
Por Carlos RydlewskiNão por acaso, mesmo no dia seguinte, as palmas das mãos de Perpétua do Socorro Alves Martins ainda estavam bastante doloridas. Afinal, diante de tão extraordinária conquista, Perpétua não conseguia se conter. Ao longo de toda a cerimônia, aplaudiu com muita vontade. Não ficou cansada, pois sua energia não vinha dos braços, mas do coração. Para quem estava por perto, dizia: “Olha, aquele é meu filho!”. Apontava para um rapaz moreno, enfiado numa beca, com um corte de cabelo batido nas laterais, o que lhe conferia um ar sério e disciplinado, à semelhança de um militar. Aquele era Wallace Alves Martins. Ele ocupava o centro do palco e das atenções na formatura de uma turma da Faculdade de Engenharia Eletrônica e da Computação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das instituições mais conceituadas nesse campo no país. Por ser o primeiro aluno do grupo, o rapaz recebera uma dupla distinção. Havia sido escolhido o orador da solenidade e fez o juramento da profissão representando os 63 estudantes da turma. Por isso, Perpétua aplaudia.
A ex-empregada doméstica e atual dona de casa estava na plateia sentada ao lado do marido, o ex-serralheiro e atual caminhoneiro Renê Fernandes Martins, que chorava sem parar, ao tentar entender como aquele menino havia chegado tão longe. Esse não era o desfecho natural para as histórias com as quais convivera por toda a vida. Wallace nasceu e cresceu numa zona de guerra do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão. Pela natureza, intensidade e periodicidade dos conflitos, a região foi batizada de Faixa de Gaza carioca. Ali, perto de 150 mil pessoas vivem sob o domínio do tráfico. Jovens oradores em formaturas de grandes universidades provenientes dessa região são raríssimos.
Wallace, portanto, brilhava no palco como uma incrível exceção. Em seu discurso, tratava das dificuldades superadas pelos estudantes na faculdade, como o suplício das baterias de cálculos e a física intrincada. Já o pensamento de Perpétua rodopiava em torno de dificuldades bem mais prosaicas. Lembrava-se, por exemplo, do dia em que o filho, a caminho da faculdade, viu-se na linha de tiro entre policiais e bandidos. O rapaz escapou das balas por um triz, pulando no chão de uma loja. Perpétua recordava-se da confusão, agradecia a Deus, e batia mais palmas.
O quadro composto pela formatura na UFRJ, que aconteceu em 2007, é um dos momentos mais marcantes na vida da família Martins. Mas representou somente a inauguração de uma série de vitórias. Wallace, hoje com 27 anos, passou pela graduação e concluiu o mestrado. Agora cursa o doutorado. No fim do ano passado, sua incipiente carreira acadêmica registrou um salto inesperado. O nerd do Complexo do Alemão recebeu um prêmio internacional em um congresso sobre processamento de sinais, realizado em Glasgow, na Escócia. Sob orientação do professor Paulo Sergio Ramirez Diniz, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, a Coppe, da UFRJ, ele demonstrou que é possível usar pequenos artifícios para aumentar a quantidade de dados digitais transmitidos por sistemas como a TV digital e a banda larga móvel.
Até o fim deste ano, desdobramentos dessa pesquisa devem render ao doutorando oito artigos científicos, sendo quatro divulgados em congressos e o restante em revistas técnicas internacionais. Para completar, Wallace tem chances de realizar parte do doutorado na Universidade de Strathclyde, na Escócia.
A DESCOBERTA DO NERD
Mas, afinal, como o rapaz do Alemão conseguiu tudo isso? Melhor, inicialmente, abordar o aspecto tecnológico da conquista. O trabalho, cuja conclusão foi premiada no congresso internacional European Signal Processing Conference, começou em 2008. Sua ideia foi lançada como um desafio pelo professor Diniz no mestrado de Wallace. Estudos teóricos produzidos em Taiwan, em 2000, já indicavam que a transmissão de dados, usando qualquer meio, poderia ser aprimorada, mas nenhuma solução prática e economicamente viável fora apresentada desde então. A resposta de Wallace aplica-se a uma técnica conhecida como OFDM (sigla para Orthogonal Frequency-division Multiplexing). Funciona assim: ao enviar um dado, como uma foto, um filme ou um texto, a OFDM repete séries inteiras de bits (a menor unidade do mundo digital, representada pelos números 0 e 1) da informação enviada. Essa redundância é proposital. Ela tem como objetivo facilitar a interpretação do sinal por parte do aparelho receptor – um celular, por exemplo.
A astúcia de Wallace consistiu em diminuir a necessidade dessas redundâncias. Em alguns casos, as séries de repetições ocupam 20% da transmissão. O doutorando da Coppe baixou esse percentual para a metade. Assim, sobra mais espaço para a transferência de dados. A técnica, portanto, permite que um maior número de informações transite no mesmo espaço, sem prejudicar a qualidade da mensagem ou gerar custos adicionais à transmissão. Aliás, ao contrário, torna o processo mais econômico. Para obter essa queda, Wallace valeu-se de uma paixão: a matemática. Ela é ainda o tema dos livros que lê nas horas vagas, quando não está no Laboratório de Processamento de Sinais (LPS), da Coppe, onde chega às 9h e de onde só sai às 20h. É também o assunto predileto dos cursos complementares a que assiste durante as férias. “A matemática, muitas vezes, não tem aplicação imediata, parece algo de outro planeta. Mas, para mim, isso a torna atraente”, afirma Wallace.Caraúbas RN
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